Guilherme Jaccoud*
O Sistema de Saúde Suplementar, uma cadeia que envolve, de um lado, operadores de planos de saúde, e de outro, dezenas de milhares de hospitais, clínicas e diferentes estabelecimentos, além de milhões de profissionais da área biomédica, tem tido um papel fundamental no combate à pandemia de Covid-19. Responsável pelo atendimento a mais de 48 milhões de brasileiros – os segurados dos planos de saúde – o setor foi decisivo ao absorver o atendimento e garantir a internação de milhões de brasileiros acometidos pelo coronavírus.
A importância da rede privada nesta luta fica claramente evidenciada se considerarmos que dos 45,8 mil leitos de UTIs existentes no Brasil, mais da metade (23 mil), de acordo com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), estão na rede particular – o Sistema Suplementar de Saúde.
Todavia, em meio a esse louvável desempenho, reconhecido por todas as instâncias governamentais e, sobretudo, pela sociedade, que pôde comprovar, na prática, a eficácia dessa rede diante de um desafio de grande escala, o Sistema Suplementar também enfrenta, neste momento, suas próprias contradições e, associada a elas, a compreensão de que todo o setor precisa passar por uma grande revisão.
Para entendermos o que se passa, é preciso antes considerar que este é um sistema atípico, de características muito peculiares. Convém lembrar que o objeto da agência regulatória são os planos de saúde, mas quem efetivamente presta os serviços são os hospitais, demais estabelecimentos e profissionais do setor. Além disso, quem contrata o plano (o segurado), muitas vezes não é aquele que utiliza os serviços.
Ao longo do tempo, nem sempre essas características foram devidamente consideradas por ocasião da edição das normas e diretrizes que disciplinam o sistema, possivelmente porque tenha faltado, durante todo este tempo, um órgão que estabelecesse as políticas públicas e as diretrizes setoriais. Tudo indica que essa lacuna foi preenchida com a revitalização, por meio do Decreto número 10.236 de 11 de fevereiro de 2020, do Conselho Nacional de Saúde Suplementar (CONSU), órgão colegiado que funciona no âmbito do Ministério da Justiça, mas é integrado por representantes de outras pastas.
Não seria exagero dizer que, em parte, as distorções no arcabouço regulatório do setor foram potencializadas pelo fato deste “mercado” ser um “oligopsônio”, ou seja, há muita concentração do lado contratante (operadoras de planos) e grande oferta do lado contratado (hospitais e prestadores de serviços em geral), o que potencializa desequilíbrios contratuais. Isso significava que de nada adianta flexibilizar a atuação de operadores de planos se, na ponta final, prestadores de serviços (hospitais, clínicas etc) saem de alguma forma prejudicados – e vice-versa.
Para que as regras funcionem, preservando a qualidade do atendimento aos usuários, a rigor, a razão de ser de todo setor de saúde privado, as soluções devem ser sistêmicas, voltadas para o “organismo” como um todo e não apenas para um de seus “órgãos”. Caberá, portanto, ao CONSU, agora revitalizado após longa hibernação, criar políticas públicas que levem a consecução deste objetivo. É preciso ressaltar que o seu papel não se confunde com o da ANS, que é o órgão regulador, cuja autonomia deve ser preservada.
Esse processo deve ter como fim o estabelecimento de ajustes no marco legal setorial que possam garantir parâmetros mais seguros e sustentáveis, em especial no que toca o equilíbrio econômico-financeiro de todos os elos dessa cadeia. Vale dizer que alguns movimentos recentes, tanto na esfera administrativa, quanto na alçada do Judiciário, comprovam a permanente tensão que paira nas relações setoriais, com a inevitável judicialização de algumas questões. A propósito, dados do Ministério da Justiça apontam que, entre 2008 e 2017, o aumento de ações judiciais contra operadoras de planos de saúde foi da ordem de 130%.
Entre esses movimentos podem ser citados a Resolução número 01, do próprio CONSU, determinando à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que adote medidas para dar maior transparência aos reajustes aplicados aos planos de saúde coletivos, bem como o julgamento que estava marcado para o último dia 16, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e acabou adiado por pedido de vista, para decidir se a lista de procedimentos obrigatórios da agência reguladora deve ser taxativa ou apenas exemplificativa.
O embate jurídico nos deixa claro o quão complexo é o sistema e, exatamente por essa razão, como é desafiadora a sua regulamentação e, consequentemente, a sua regulação. Não por outra razão, nos mostra também a necessidade de promover uma ampla discussão sobre o setor, considerando a sua relevância para o país – conforme os próprios dados do combate à Covid-19 mencionados acima revelam – com o intuito de discutir ajustes no marco legal que, de um lado, contribuam decisivamente para garantir a manutenção dos serviços de qualidade hoje prestados pela rede privada à população e, por outro, para reduzir a judicialização, que em muito afeta o setor na medida em que gera instabilidade e insegurança.
Para que este objetivo seja alcançado, é imperativo que prestadores de serviços, entre os quais estão hospitais e estabelecimentos de saúde, bem como usuários (os segurados de planos de saúde), apresentem as suas demandas, mas tenham em mente, também, que as operadoras de planos de saúde, longe de serem os “vilões” do sistema, são, ao contrário, um elo fundamental dessa cadeia, o que significa que devem ser igualmente ouvidas em seus pleitos.
Não é exagero dizer que da sobrevivência delas depende a sobrevivência dos prestadores de serviços, sendo a recíproca inteiramente verdadeira. A relação de interdependência é inexorável, e daí a necessidade de um debate franco e transparente.
A notícia boa é que parece que todos os envolvidos perceberam a importância do diálogo, ao mesmo tempo em que o CONSU já começou a atuar, discutindo as diretrizes que poderão levar o setor a um novo patamar.
*Presidente do SINDHRio –Sindicato dos Hospitais, Clínicas e Casas de Saúde do Município do Rio de Janeiro e da FEHERJ – Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Serviços de Saúde do Estado do Rio de Janeiro.